17 fevereiro, 2014

grafite, diamante

tem um momento que a coisa... pam! sem muita explicação, sem muita elaboração. como se já estivesse pronta, maturada e precisasse apenas de um momento-quando pra vir à luz. quando a gente vive uma vida inteira junto, sabe que não tem só um momento-quando, são vários. não tantos que a coisa toda seja banal. mas também não tem um e pronto. porque quando a gente vive uma vida inteira junto, a gente vive várias vidas e não uma só. a gente muda, desmuda, encontra, desencontra, tem épocas de alegria e vivacidade e outros de tristeza e melancolia. e ainda nem tô falando de tempo, repare, embora o tempo faça sim diferença. sessenta e um anos, foi o tempo que eu vivi do lado dele. foram várias as vidas juntos – várias as cidades, várias as casas, vários os amores.
ele era tão quieto. o homem alto e forte por quem me apaixonei. pelos olhos dele, o mundo até se organizava, visto lá de cima, com distância e perspectiva. era um conforto pro meu olhar miúdo, de quem presta atenção ao feijão e arroz que na minha época ainda se separava, grão e pedras. meu olhar atento, de quem abre os ovos, peneira a farinha e o açúcar, e acompanha pelo olfato o que era massa virar pão. ou bolo.
se quisesse acompanha-lo pelos sentidos, dava para adivinhar ainda da cama o banheiro se encher do cheiro do sabonete predileto e depois a loção pós-barba e ainda o desodorante. a partir daí, acompanhava-o pelos ouvidos: o som da escova de dentes, na boca, na pia. o som da respiração dele, aproximando-se de mim, para me acordar com um beijo. o som da risada dele, no café da manhã. ou do seu suspiro, fossem duros os tempos ou dolorosas as notícias. a voz dele quase não se ouvia. sua presença era discreta. mas tão fundamental, descubro agora. agora quando sinto imensa falta do silêncio dele.
ando com as pernas fracas, parecendo bambas, como se eu tivesse desaprendido a andar. não é da velhice, não. embora eu esteja velha, claro: não só nas rugas, nem no cabelo branco, nem nas mãos cheias de veios e raízes. mas as pernas fraquejam porque agora ando sempre sem chão. o pé se lança à frente e entre o início e o fim do movimento me lembro, e é aí que a perna falha. essa consciência de estar sozinha no mundo. de estar num mundo sem ele. ele que é meu companheiro, que era minha companhia. se eu chorasse tudo o que dói, escorreria água pela cozinha, pela escadaria da frente de casa, pela rua inclinada onde acabamos vindo morar, e já faz tantos anos. a gente toda ia achar que era março, que era o final do verão com seu calor, suas chuvas repentinas, suas enchentes. não faz diferença o gosto da chuva e o do choro destampado.
em um dia qualquer, cismei de inovar na sobremesa. a gente já tinha bem uns trinta anos de casado, eu em crise, cansada da fase da torta de limão. (quando casamos, houve a fase da ambrosia. depois nasceram as crianças, e houve a fase do chocolate: mousse, bolo, bolacha, creme. também houve o ciclo do pudim de uva, tão macio e refrescante. as sobremesas entravam e saiam de moda, conforme o ritmo da vida). os filhos vinham aos finais de semana e resolvi testar uma receita estranha, que veio num livro de receitas vegetarianas indianas. acho que era a única receita do livro todo que dava certo. as outras melavam, desandavam, murchavam. mas o gulab jamun funcionou. e virou nossa receita de almoços longos e largos por alguns anos. minhas mãos não eram tão manchadas e enrugadas como agora. lembro direitinho da sensação que o leite em pó se misturando à manteiga deixava na minha mão.
no velório, lembrei desse doce. deve ser o cheiro das flores. a gente começa fazendo a calda doce: um copo e meio de açúcar, um copo de água, um pouco de cardamomo e duas gotas de água de rosas. primeiro deixa a água e o açúcar ferverem. só depois coloca o cardamomo e a água de rosas. ainda é opaco, logo quando desliga. aí tem que colocar a colher de chá de suco de limão. para preservar a consistência. já naquela época eu pensava uma estranheza: que aquela calda também sabia a embalsamamentos. que era para perfumar e adocicar a morte. cada coisa que a gente pensa, mesmo jovem. rá! agora eu era jovem aos sessenta anos... tudo é mesmo uma questão de perspectiva.
depois da calda, começa-se a preparar os bolinhos. uma xícara de leite em pó. uma colher de sopa de manteiga, pois eu nunca tinha ghee. uma colher de sopa de farinha de trigo e outra de semolina. um quarto de colher de chá de fermento químico. essa parte sempre me indignava: quem é que pensa em colocar um quarto de colher de chá? que medida estranha é essa? também vai duas colheres de sopa de leite morno, ou mais, se precisar, e mais umas gotinhas de suco de limão. o segredo é deixar o leite umedecido antes de começar a misturar. e deixar descansar um pouquinho antes de fritar. porque os bolinhos devem ficar um tantinho aerados, pra absorver a calda. bolinhos-múmia. bolinhos de chuva encharcados de água doce. bolinhos bons e úmidos e docinhos na medida. rescendendo suavemente a rosas, distraindo da morte. depois de prontos – vinte quatro horas mergulhados na calda – e gelados, os bolinhos quase imitavam fruta madura. nem parecia que eu tinha feito: mas colhido de uma árvore secreta. eu gostava, gostava mesmo, de cultivar aqueles bolinhos.
o momento em que eu me dei conta, assim, de supetão, de que ia ficar sozinha nem foi agora, no final. foi antes, muito antes, quase que lá no começo. um dia acordei mais tarde e a casa estava vazia. nem trinta anos eu tinha. procurei na sala, na cozinha, nos banheiros. quando ele voltou – do jornal de domingo e do pão fresco – me encontrou chorando à beça. foi quando eu soube que seria viúva. desde então foi essa pequena falha entre uma batida e outra do meu coração. antecipando a falha entre os passos. as gotas de limão no caldo doce, pra manter lúcida a transparência.

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