27 fevereiro, 2014

a dupla chama

para j.



entre a surpresa e a preguiça, a amiga notou que precisava muita paciência pra fazer aquela comida. pra ser sincera nem entendi direito a observação: era só deixar ferver o litro de água e depois baixar o fogo e jogar o hondashi e finalmente ir dissolvendo, pouco a pouco, o missô. pensando bem, beirava a meditação o cuidado em passar a colher de um lado para o outro sobre o missô depositado na concha. dava para ler o futuro nos desenhos que se desprendiam da massa de soja e se misturavam ao hondashi – mais grosso, a gravidade rápida em leva-lo ao fundo da panela. não era difícil, nem elaborado, mas exigia uma espécie de transe. um tipo de paciência. o respeito aos mistérios das coisas que se cozinham lentas. aquelas que não adianta apressar.
uma vez, um amor, quando jovem. daqueles em que tudo erra, mas não encerra e aí o amor fica ali, cozinhando lento, feito batata doce que a gente enrola no alumínio com casca e tudo e esquece no fundo do forno enquanto assa um suflê de abobrinhas ou um pão. só pra depois encontrar o alumínio escurecido e se surpreender com a doçura escorrendo morna, o cozimento completo sem que ninguém tenha programado o timer ou se dado conta daquela prontidão se instalando devagar. a distração dos outros cheiros e sabores alimentando o esquecimento. preparando o tempo da rememoração e do reencontro. foi de lá, desse amor cru e colhido verde, que eu trouxe esse fogo brando.
e essa paciência infinita pra esperar o tempo de cada coisa. o tempo de cada um.
e também uma espécie de medo da morte – do fogo tão baixo que se apaga sem que a gente se dê conta.
nem tudo porém se coze em fogo brando – só o que é duro demais, o que é sem gosto demais, aquilo em que é preciso matar a semente pra melhor saborear o grão.
a lição vem tardia? os dentes de alho separados, protegidos pela casca roxa. na panela, a xícara de água fervendo com a xícara e meia de açúcar. e aí os alhos borbulhando em festa, a chama viva, a falta de tampa. a umidade evaporando para ceder lugar ao que é doce, cada vez mais doce.
essa receita só me é possível enquanto envelheço: deixar a água secar assim, quase ao ponto da incineração; flertar de tão perto com a queimadura; chegar a sentir o cheiro e o gosto do carvão. e então interromper – a meia xícara de aceto balsâmico: avinagrando a fervura só para logo se misturar às blandícias do açúcar. o caramelo fresco a envolver o que um dia foi rosa e roxo; a ternura a abraçar o que outrora somente acidez e olor.
não, nem tudo se coze em fogo brando. tem o que valha a pena que se prepara assim: o fogo temerariamente alto, a calda perigosamente grossa. tecendo o agridoce de estar vivo com diligência. reservando a paciência para a fruição de espremer um a um os dentes de alho sobre o pão fresco. abandonando-a de novo para cravar vorazes os dentes nesse breve festejo.

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